Esse é meu blog com histórias e lembranças muito antigas, daquelas que desenterramos aos poucos de dentro da gente enquanto vai escrevendo. Descobri esse ótimo exercício. Pode ser que alguma história se misturou à outra ou tenha se perdido no passado, mas raramente é inventada. Somente quem esteve lá pode confirmar. "Daquelas Histórias" é uma homenagem aos meus irmãos Thiago e Amanda.




ALIMENTE OS PEIXINHOS CLICANDO COM O BOTÃO ESQUERDO DO MOUSE

sábado, 1 de maio de 2010

QUANDO O COELHINHO DA PÁSCOA SE COÇOU.

Era um domingo de páscoa de mil novecentos e oitenta e poucos, em São Gonçalo, e da rua já sentíamos um delicioso cheiro de canjica (mugunzá). Eu, meus irmãos e minha mãe discutiamos sobre as curiosidades da natureza que fazia um coelhinho botar ovos de chocolate tão grandes nessa época do ano. Assim que chegamos à casa de Dona Vanda, mãe de João, namorado de minha mãe, fui recepcionado com um beijo da dona da casa que provavelmente deixara a canjica no fogo para abrir o portão. Dona Vanda tinha um carinho imenso por mim, fazia de tudo para me agradar e sempre achava graça no que eu dizia, até quando minha mãe se irritava com as constantes brigas com meus irmãos. O fato é que Dona Vanda largara em minha bochecha um beijo suado, quente e gorduroso do qual eu não fiz o mínimo esforço em evitar limpá-lo com as costas da minha mão direita. Não lembro se fiz cara de nojo, devo tê-lo feito, mas antes que eu terminasse de limpar minha bochecha melada, fui interrompido delicadamente pelas mãos de minha mãe segurando meu braço e explicando que não era educado limpar o beijo de alguém que gostava tanto de mim como sua querida futura sogra. O vermelho da vergonha nem teve tempo de tomar toda a cara de minha mãe, quando perceberam na minha cara um ar de espanto olhando o umbigo de Seu Edézio, marido de Dona Vanda, que veio logo em seguida tentar me defender, dizendo que meu gesto era coisa normal de criança. Seu Edézio estava suado, e provavelmente limpava o jardim, ou dava banho no cachorro; mas, eu nem me lembro se tinham jardim ou cachorro no quintal. Ao perceber meu olhar intrigante para o umbigo de seu marido, que ficava exatamente na direção dos meus olhos, Dona Vanda constatou que era um enorme carrapato instalado ali naquele inesperado esconderijo, o causador de meu espanto. Dando uma desculpa da qual eu não me lembro, mas deve ter sido algo relacionado com o contato de Seu Edézio com as plantas, ou com o cachorro - acho que Seu Edézio estava mesmo dando banho num cachorro - Dona vanda pediu que tirasse imediatamente aquele bicho nojento. Foi a primeira vez que vi um carrapato tão grande. Provavelmente foi a primeira vez que vi um carrapato, mas, o que me impressionou mesmo foi ter pensado, a princípio, que aquilo seria o próprio umbigo de Seu Edézio. Claro que foi pior saber que era um carrapato, e muito pior quando, ao me responder se carrapato não era coisa só de cachorro como piolho era coisa só de criança, tirou o infeliz do umbigo e matou com uma pedrinha sobre o cimento do muro fazendo explodir uma bolinha de sangue, e disse que o bichinho nojento grudava em qualquer outro bicho que tivesse sangue para se alimentar, mas, que eu não me preocupasse, pois, não era o ser humano seu prato preferido e sim o cachorro. Algumas horas depois, já havíamos esquecido do carrapato de Seu Edézio e do beijo melado de dona Vanda, e a canjica estava muito gostosa. Dona Vanda deixava que a gente adicionasse o quanto de leite condensado quisesse, o que em nossa casa eu não podia fazer. Por alguns instantes comecei a comparar o grão da canjica com o carrapato de seu Edézio, mas não cheguei a verbalizar meu pensamento indigesto, assim como não me lembro de nenhuma outra advertência menos delicada de minha mãe, que, na casa dos outros fazia de tudo para não me bater como era de costume na nossa casa.
Anos depois, já adolescente, algo me fez relembrar o umbigo de seu Edézio. O que provavelmente fez com que esse acontecimento permanecesse até hoje em minha memória sobrevivendo em meio a outras histórias que vivi na infância e que se apagaram com o tempo, como acontece com todo mundo. Estávamos em Santana de Japuíba, na casinha da roça de meus avós, onde passamos juntos os fins de semana por muitos anos: eu, meus avós, Tia Lizete e Luis Armindo, namorado de Tia Lizete. Era manhazinha, quando o mato ainda molhado de sereno guardava surpresas que me faziam andar por todo o terreno logo que acordasse, antes mesmo do café da manhã. Logo em frente a casa, onde a varanda ainda não havia sido construída, deparei-me com um sapo enorme, horroroso e cheio de verrugas que Luis Armindo percebeu primeiro que eram, na verdade, carrapatos. Cada pulo fazia o pobre anfíbio parecer mais feio do que já era, como se o peso dos parasitas que se camuflavam em seu couro o deixasse cansado e triste, algo que ia além da cena inacreditável e grotesca que presenciamos por minha causa antes do café da manhã. Tia Lizete, abismada, entoava suas engraçadas expressões religiosas intercaladas de gargalhadas enquanto eu lembrava e contava a história de seu Edézio. Obviamente riamos e sentíamos nojo do umbigo dele e do sapo que ainda se encontrava perto da porta e ninguém tinha coragem de enxotar. E nesse domingo, por coincidência, tínhamos canjica no café da manhã.

3 comentários:

  1. adorei,.. o desenvolvimento ta incrivel.. ta escrevendo bem porra!
    (me emocionei mto qdo fala de japuiba... lembrei de vovô)

    ResponderExcluir
  2. Adorei o seu texto. Meus avós também tinham uma casinha em Japuíba, onde eu amava passar minhas férias. A casinha deles ficava perto da fazenda do Sr. Reinaldo, perto do poço verde e na subida da Serra de Bertoldo. Agora estou eu a procurar terreno para comprar por lá para poder reviver junto com meu filho todas esses causos de roça.
    Obrigada pela recordação ;)
    Bjks
    Flau

    ResponderExcluir